Uma Aventura: As Aventuras de Huckleberry Finn


AS AVENTURAS DE HUCKLEBERRY FINN
MARK TWAIN
(1884)

Não vão saber quem sou se não tiverem lido um livro chamado As Aventuras de Tom Sawyer, mas isso pouco importa. Esse livro foi escrito pelo senhor Mark Twain, e ele disse a verdade, quase sempre. Exagerou nalgumas coisas, mas, em geral, disse a verdade. Isso não é nada. Nunca conheci ninguém que não tivesse mentido uma vez ou outra, excepto a tia Polly, ou a viúva, ou talvez a Mary. A tia Polly — a tia do Tom — e a Mary, e a viúva Douglas fazem todas parte desse livro, que é, dum modo geral, baseado em factos reais, só que com alguns exageros, como já disse. 
Esse livro acaba assim: eu e o Tom encontrámos o dinheiro que os ladrões tinham escondido na gruta, e ficámos ricos. Ficámos com seis mil dólares em ouro cada um. Era qualquer coisa de extraordinário ver aquele dinheiro todo junto e empilhado. Pois bem, o juiz Thatcher pegou nele e pô-lo a render, e a gente passou a ganhar um dólar por dia, todos os dias do ano — nem sabíamos o que fazer com tanto dinheiro. A viúva Douglas decidiu tratar-me como filho, e declarou que me ia sivilizar. Mas não foi nada fácil viver naquela casa e ficar lá o tempo todo, tendo em conta a rotina e decência deprimentes que a viúva põe em tudo o que faz. Por isso, quando já não conseguia aguentar, pirei-me dali pra fora. Vesti os meus velhos farrapos e voltei a ser livre e contente. Mas o Tom Sawyer veio à minha procura e disse que ia começar uma quadrilha de ladrões, e que eu só me podia juntar se voltasse pra casa da viúva e fosse respeitável. Por isso voltei. 
A viúva chorou por minha causa e chamou-me cordeirinho perdido, e mais uma série doutros nomes, mas não o fez por mal. Ela voltou a vestir-me com aquelas roupas novas, e eu nada pude fazer senão desatar a suar e a sentir-me todo apertado. E depois, pronto, começou outra vez a velha rotina. A viúva fazia questão de tocar um sino pra anunciar cada refeição, e eu tinha de ir pra casa assim que o ouvia. Depois, quando lá chegava, não podia começar logo a comer; era preciso esperar que a viúva baixasse a cabeça e acabasse de murmurar as suas preces por cima da comida, apesar de não haver nada de errado com ela — até vem toda separada, com cada alimento no seu próprio prato. Num barril com restos, o caso muda de figura; os alimentos e molhos misturam-se, e a refeição até sabe melhor.
 No dia em que voltei, depois da refeição, ela pegou no seu livro e ensinou-me uma história sobre Moisés e uns tais de juncos, e eu fiquei ansioso por saber mais sobre ele, até que ela acabou por revelar que Moisés já 'tava morto há bastante tempo, e foi aí que perdi o interesse na história, porque pessoas mortas a mim não me interessam. 
Pouco depois, deu-me vontade de fumar e perguntei à viúva se podia, mas ela disse que não. Disse que era um mau hábito e que não era uma prática sadia, e que eu devia tentar parar. Há pessoas que são assim. Fartam-se de dizer mal duma coisa quando não sabem nada sobre ela. Quer dizer, primeiro, veio-me chatear com o Moisés, que nem sequer era parente dela, e que já 'tava morto, logo não tinha utilidade nenhuma pra ninguém, mas depois começou a pôr defeitos em mim por fazer uma coisa que até tem alguma utilidade. Como se isso não bastasse, mais tarde, pôs-se a fungar as suas pitadas de rapé; claro que aí já não fazia mal, porque era ela a fazê-lo. 
A sua irmã, a senhora Watson, uma velha solteirona bem magra, com óculos, tinha acabado de vir morar com ela, e 'tava agora a dar-me lições com um livro de ortografia. Fazia-me trabalhar no duro durante mais ou menos uma hora, até que a viúva lhe dizia pra abrandar. Eu já não aguentava muito mais. Depois da lição, era um tédio insuportável, e eu começava a ficar irrequieto. A senhora Watson dizia: «Não ponhas os pés aí, Huckleberry» e «Não te sentes assim, Huckleberry — senta-te direito»; e não tardava a acrescentar: «Pára de te espreguiçar e de bocejar dessa forma, Huckleberry — porque não te comportas?» Depois contou-me tudo e mais alguma coisa sobre o sítio onde os meninos malcomportados iam parar, e eu disse-lhe que só me apetecia 'tar lá. Ficou zangada, mas eu não disse aquilo com más intenções. Tudo o que queria era ir a algum lado, só queria mudar d'ares, não era preciso ir a nenhum lugar específico. Ela disse que dizer uma coisa dessas era uma maldade; que nunca seria capaz de dizer tal coisa, e que ia viver de maneira a ir parar ao sítio bom. Eu cá não via vantagens nenhumas em ir pra onde ela queria ir, por isso decidi que nem sequer me ia esforçar pra que isso acontecesse. Mas não lhe disse isso, porque, se dissesse, só ia causar problemas e arranjar sarilhos pró meu lado. 
Ela agora 'tava empolgada, por isso continuou a falar e começou a contar-me tudo sobre o sítio bom. Disse-me que, nesse lugar, a única coisa que as pessoas faziam o dia inteiro era andar por lá com uma harpa e cantar, pra todo o sempre. Isso não despertou muito o meu interesse. Mas não lho disse. Perguntei-lhe se ela achava que Tom Sawyer ia lá parar, e ela disse que nem pensar. Fiquei contente com isso, porque queria que continuássemos os dois juntos. 

Guerra & Paz, 2017
(Clássicos)
trd. Miguel Nogueira
(lido em 2025)