Uma Aventura: Benito Cereno, Billy Budd

BENITO CERENO, BARTLEBY, BILLY BUDD
HERMAN MELVILLE
(1855, p. 1924, 1853)
Billy Budd
(Uma Narrativa Interior)
Antes do aparecimento dos navios a vapor, quem se passeasse ao longo das docas de qualquer porto de considerável importância, sentiria, com mais frequência do que hoje, a sua atenção desperta por um grupo de marinheiros bronzeados, da Marinha de Guerra ou da Mercante, a gozarem em terra a sua licença. Algumas vezes vê-los-ia reunidos à volta de uma figura superlativa, embora da mesma patente, caminhando juntos como Aldebarã entre as estrelas de menos intensidade da sua constelação. Este astro de primeira grandeza era o Marinheiro Modelo dos tempos menos prosaicos das Marinhas Mercante e Militar. Não havia nele qualquer ostentação e aceitava esta homenagem espontânea dos seus camaradas com a simplicidade de quem vê reconhecido um direito natural. Lembro-me de um caso particularmente interessante. Há já uns cinquenta anos, vi em Liverpool à sombra do grande paredão imundo de Prince's Dock (há muito deitado abaixo), um simples marinheiro, tão negro que devia ser um nativo africano de puro-sangue hamita. Era uma figura bem proporcionada, com uma estatura acima da média. Bailavam sobre o seu peito de ébano as duas pontas de um lenço de seda garrida que tinha amarrado ao pescoço; das orelhas pendiam duas grandes argolas de oiro e a sua cabeça harmoniosa era coroada por um barrete escocês.
Era julho, numa tarde quente, e no seu rosto brilhante de suor faiscava um bom humor bárbaro. Enquanto ziguezagueava entre os seus camaradas, um largo sorriso abria-se-lhe nos dentes brancos. Os outros marinheiros eram homens de todas as origens e compleições, de sorte que Anarchasis Cloots bem os podia ter feito figurar como representantes da Raça Humana na primeira Assembleia Francesa. A cada tributo espontâneo prestado a este pagode negro — o tributo de uma pausa e de um olhar, ou, mais raramente, de uma exclamação —, aquela turba variegada dava boas provas de um orgulho que se assemelhava, sem dúvida, ao dos sacerdotes assírios prosternados diante do grande touro de pedra.
Se às vezes, quando vinha a terra, o Marinheiro Modelo a que me estou a referir parecia um príncipe Murat dos mares, em nada ofuscava o elegante Billy da nossa narrativa. Billy corresponde a um curioso tipo de personalidade, hoje quase extinto, mas que ocasionalmente ainda se pode encontrar, e com aspetos mais curiosos do que nunca, num desses marinheiros que vão ao leme das suas embarcações no tempestuoso canal de Erie ou, mais frequentemente, entre os que deambulam pelas tabernas dos cais. Tratava-se sempre de um excelente profissional do seu perigoso ofício e também um forte boxeur e lutador. A imagem da força e da beleza. Por toda a parte se contavam histórias das suas proezas. Em terra, era um campeão; a bordo, um orador; e em cada situação era invariavelmente o melhor. Ei-lo escarranchado nos lais, enrizando as gáveas em plena tormenta: um pé no «estribo» e ambas as mãos a puxar com força os arganetes e as amarras, num movimento idêntico ao jovem Alexandre domando o fogoso Bucéfalo. Uma figura soberba, projetada no céu de tempestade pelos cornos de Taurus, a bambolear-se jovialmente sobre os cabos esticados dos mastros.
A sua natureza moral estava quase sempre em harmonia com as suas capacidades físicas. De facto, se não fosse moldado por essa força moral, o seu porte gracioso e o seu poder, sempre atraentes no porte masculino, não chegariam para justificar as homenagens prestadas ao Marinheiro Modelo pelos seus companheiros menos dotados.
Relógio d'Água, 2017
(Clássicos para Leitores de Hoje)
trd. José Sasportes, José Miguel Silva,
Frederico Pedreira
(lido em 2023)