Uma Aventura: Moby-Dick


MOBY-DICK
HERMAN MELVILLE
(1851)

«Chamem-me Ismael. Há alguns anos não importa precisá-los — tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada de especial que me prendesse a terra firme, pensei em embarcar e ver o mundo das águas. É a maneira que tenho de afugentar o fastio e de regular a circulação. Sempre que dou por mim sem um sorriso na cara; sempre que um Novembro húmido e chuvoso me invade a alma; sempre que dou por mim involuntariamente parado diante de casas funerárias, e a acompanhar o passo de todos os funerais que cruzo; e em especial quando as minhas neuras tomam de tal modo conta de mim que se torna imperioso recorrer a um forte sentido de bom senso que me impeça de sair à rua com o metódico propósito de arrancar os chapéus das cabeças das pessoas que encontro... percebo então que chegou a hora de ir para o mar tão cedo quanto possível. É o meu substituto a uma pistola carregada. Com desenvoltura filosófica, Catão lança-se à sua espada; eu meto-me tranquilamente a bordo. Não há nisto nada de espantoso. Sem o saberem, quase todos os homens, cada um a seu modo, numa ou outra altura da vida, nutrem sentimentos muito semelhantes àquele que tenho pelo oceano.»

«Há ocasiões e momentos raros nesta estranha e turva história a que chamamos vida em que um homem é levado a tomar o universo inteiro por uma grande piada, embora mal possa discernir a graça e muito suspeite que a piada é feita à sua única e exclusiva custa. No entanto, nada o desalenta e nada parece valer a pena de uma disputa. Engole todos os acontecimentos, todas as crenças e persuasões, todos os males visíveis e invisíveis, por mais nodosos que sejam; como uma avestruz de estômago poderoso devora cartuchos e pedras de fuzil. E quanto às pequenas dificuldades e aflições, às perspectivas de desastre súbito, ao perigo de vida ou da perda de um membro; tudo isto, e a própria morte, lhe não parecem senão golpes matreiros e bem-humorados, joviais palmadas nas costas dadas pelo invisível e irresponsável velho folião. Essa bizarra espécie de humor impertinente a que me refiro abate-se sobre um homem somente em alturas de adversidade extrema, atinge-o no próprio centro da sua seriedade, de tal modo que aquilo que antes lhe parecia momentoso agora se lhe afigura uma mera parte da piada geral Não há nada como os perigos da baleação para gerar esta espécie de simples e livre filosofia genial do desesperado; com ela encarava eu agora a viagem do Pequod e a grande Baleia Branca, o seu propósito.» 

«A massa portentosa da baleia oferece-se como um tema realmente simpático, que é possível desenvolver, ampliar, e tomar para uma dissertação demorada. Mesmo que o quisessem, não poderiam comprimi-lo. É justo que deva ser unicamente tratada num in-fólio imperial. Não querendo insistir nas suas medidas do espiráculo à cauda, e nos metros de circunferência da sua cintura, peço-vos apenas que pensem nas gigantescas involuções dos intestinos, que nela jazem enrolados como grandes cabos e espias no bailéu subterrâneo de um navio de guerra. 
Visto que tomei a meu cargo falar deste leviatã, cabe-me mostrar-me omnisciente e exaustivo na empresa, sem fechar os olhos às mais ínfimas células de espermacete do seu sangue, e percorrê-lo até à mais remota dobra das suas entranhas. Tendo-o já descrito na maior parte das suas peculiaridades comportamentais e anatómicas, resta agora exaltá-lo de um ponto de vista arqueológico, fóssil e antediluviano. Aplicados a qualquer outra criatura que não o leviatã a uma formiga ou a uma pulga —, tão imponentes termos podem ser justamente considerados por demais grandiloquentes. Mas quando o tema é o leviatã, o caso muda de figura. Vejo-me obrigado a tomar esta empresa cambaleando sob as mais pesadas palavras do dicionário. E diga-se de passagem que sempre que foi conveniente consultar um no curso destas dissertações, servi-me invariavelmente de uma enorme edição in-quarto de Johnson, expressamente adquirida com esse propósito, porque a corpulência invulgar do famoso lexicógrafo qualificou-o como a nenhum outro para compilar um léxico que servisse a um autor baleeiro como eu. Ouve-se muitas vezes falar de escritores que ufanam e incham com o seu tema, embora este pareça absolutamente vulgar. Que será, então, de mim, que escrevo sobre este leviatã? Inconscientemente a minha caligrafia expande-se em maiúsculas de cartaz. Tragam-me uma pena de condor! Tragam-me a cratera de Vesúvio como tinteiro! Amigos, segurem-me os braços! Pois no mero acto de redigir os meus pensamentos sobre este leviatã, eles extenuam-me, e fazem-me desfalecer perante o alcance da sua abrangência, como se esta abarcasse todo o círculo das ciências, e todas as gerações de baleias, e de homens, e de mastodontes, passados, presentes e por vir, com todos os panoramas volúveis dos impérios na Terra, através do universo inteiro, arredores incluídos. Tamanha, e de tamanho poder de ampliação, é a virtude de um tema vasto e liberal! Expandimo-nos até atingir a sua magnitude. Para produzir um livro poderoso é preciso escolher um tema poderoso. Não pode escrever-se nenhum volume notável e duradouro sobre a pulga, embora muitos tenham sido aqueles que o tentaram.»

Guerra & Paz, 2021
(Clássicos)
trd. Maria João Madeira
(lido em 2025)