Uma Aventura: O Coração das Trevas

O CORAÇÃO DAS TREVAS
JOSEPH CONRAD
(1899)
A Nellie, chalupa de recreio, rodou à volta da âncora sem panejar as velas, e ficou imóvel. A maré enchia quase sem vento, e como seguíamos rio abaixo só nos restava fundear à espera da viragem.
O estuário do Tamisa rasgava-se como a boca de um canal interminável. Céu e mar uniam-se ao largo, sem traço de separação, e as velas crestadas das barcaças, a subirem com a maré, pareciam imobilizar-se no espaço luminoso como fardos de lona muito tensa, vermelhos, onde luzia o verniz dos mastros. As margens baixas corriam para o mar e sobre elas carregava uma névoa diluída na planura. O ar estava sombrio acima de Gravesend, e mais longe parecia condensar-se numa treva desolada que pesava, imóvel, sobre a mais vasta e grandiosa cidade do mundo.
O director da Companhia era nosso capitão e anfitrião. De costas, com os olhos postos no mar, a nós quatro inspirava simpatia. Em todo o rio nada havia mais náutico do que ele. Tinha ar de piloto de barra, o que entre marinheiros quer dizer confiança personificada. Era difícil admitirmos que a sua profissão deixasse de chamá-lo ali, ao luminoso estuário, e o não levasse longe, para enigmáticas sombras.
Eu já disse noutro lado que a todos nos ligava o laço do mar. Em largos períodos de afastamento mantinha unidos os nossos corações, mas, além disso, garantia a tolerância mútua que devemos às nossas histórias — ou mesmo certezas. O advogado — o melhor dos camaradas — era homem com tantos anos e virtudes que lhe dávamos direito à única almofada e a estender-se no único tapete do convés. O contabilista já tinha à frente a caixa do dominó e divertia-se a fazer construções com pedras de osso. Marlow, esse estava à popa com as pernas cruzadas e encostado ao mastro da catita. Era um homem de rosto cavado, tez lívida e tronco hirto, com ar ascético de ídolo, assim, de braços caídos e palmas das mãos viradas para cima. O director dirigira-se à ré, e já ciente da boa prisão da âncora veio sentar-se connosco. Depois de algumas palavras despreocupadas, no iate houve um silêncio. Por qualquer razão que me não lembra, a partida de dominó ficou por jogar. Estávamos pensativos e apenas dispostos à contemplação. O dia acabava numa paz de radiações calmas e esplêndidas. O brilho da água era pacífico; sem nuvens, o céu, todo ele benigna e luminosa imensidão, e a própria névoa era uma gaze leve, nos pântanos do Essex, presa às encostas arborizadas do interior e estendida em pregas diáfanas pela costa baixa. Só a oeste, suspensa por cima das extensões visíveis, minuto a minuto a treva se ia fazendo mais opaca e como que enraivada contra o Sol prestes a tocar-lhe.
Por fim, numa queda de curvatura imperceptível, o Sol desceu e, de branco-incandescente passou a vermelho-turvo, sem raios nem calor, como se fosse ficar apagado de repente e ferido de morte, ao tocar aquela escuridão caída em peso sobre a humanidade.
Editorial Estampa, 1999
(Ficções)
trd. Aníbal Fernandes

(lido em 2004)