Uma Certa Aversão: Berlim Alexanderplatz


BERLIM ALEXANDERPLATZ
ALFRED DÖBLIN
(1929)

No 41 para a cidade
Encontrava-se diante das portas da prisão de Tegel e estava livre. Ainda ontem tinha ancinhado batatas lá para trás nos campos com os outros, em vestimenta de prisioneiro, agora envergava um casaco de Verão amarelo, eles continuavam a ancinhar, lá atrás, ele estava livre. Deixou passar eléctrico atrás de eléctrico, colou as costas ao muro vermelho e não saía dali. O guarda-portão, passeando para cá e para lá, várias vezes se abeirou dele indicando-lhe o carro a tomar, ele dali não saía. Chegara o momento terrível [terrível, Franz, pá, terrível porquê?], tinham expirado os quatro anos. As negras portadas de ferro, que vinha contemplando de há um ano para cá com crescente asco [asco, asco porquê?], tinham-se fechado atrás de si. Punham-no novamente fora. Lá dentro ficavam os outros carpinteirando, envernizando, separando, colando, ainda lhes faltavam dois anos, cinco anos. Estava na paragem. 
Começa agora a pena. 
Sacudiu-se, engoliu em seco. Tropeçou no pé. Então, tomando balanço, entrou no eléctrico e sentou-se. No meio das pessoas. Vá, embora. Ao princípio era como quando se está no dentista e ele agarra numa raiz com o alicate e começa a puxar, 
a dor vai aumentando, a cabeça parece que vai rebentar. Voltou a cabeça para trás para o muro vermelho, mas o eléctrico disparou com ele veloz pelos carris fora, e já só era a cabeça que continuava apontada à prisão. O carro fez uma curva, árvores e casas apareceram de permeio. Ruas buliçosas emergiram, a Seestrasse, uns entravam, outros saíam. Dentro de si um grito de pavor: atenção, atenção, vai arrancar. A ponta do nariz gelou-lhe, por cima da bochecha um sibilar. Jornais Zwülf Uhr Mittagszeitung, Die neuste Illustrierte, Die Funkstunde neu, «Entrou mais alguém p'ra bilhete?» Os tipos da Polícia agora andam com fardas azuis. Sem dar por isso voltou a sair do carro, estava no meio das pessoas. O que é que se passava? Nada. Cabeça erguida, meu suíno escanzelado, domina-te, ainda te esfrego o punho no focinho! Barafunda, que grande barafunda. Como aquilo mexia. Os meus miolos já não devem ter banha nenhuma, hão-de estar mais que ressequidos. O que p'ráli vai. Sapatarias, chapelarias, lâmpadas incandescentes, tabernas. É que as pessoas têm de ter sapatos, se andam tanto dum lado p'ró outro, até que nós também lá tínhamos uma sapataria, vamos lá meter isso na cabeça. Uma centena de vidraças polidas, deix'ás lá brilhar à vontade, descansa que não te vão meter medo, até podes dar cabo delas, o que é que há de especial co'elas, estão é com lustre, mais nada. Estavam a arrancar o pavimento da Rosenthaler Platz, ele seguia no meio dos outros sobre pranchas de madeira. A pessoa mistura-se com os outros, aí tudo se esfuma e então não notas nada, homem. Havia bonecos nas montras com fatos, casacos, saias, meias e sapatos. Do lado de fora tudo se movia, mas... lá para trás... não se passava nada! Aquilo... não tinha... vida! Tinha caras alegres, ria, ficava à espera a dois e dois ou a três e três na ilha de peões frente ao Aschinger, fumava cigarros, folheava jornais. Aquilo estava por ali como os lampiões... e... ia ficando cada vez mais hirto. Eram um todo com as casas, tudo branco, tudo madeira. 

Dom Quixote, 2010
(Ficção Universal)
trd. Sara e Teresa Seruya

(lido em 2009)