Uma Certa Aversão: O Homem sem Qualidades


O HOMEM SEM QUALIDADES VOL.I
ROBERT MUSIL
(1930)

Uma zona de baixas pressões sobre o Atlântico deslocava-se para leste, em direcção a um anticiclone situado sobre a Rússia; não denunciava ainda qualquer tendência para o evitar, e dirigia-se para norte. Os isotermos e os isóteros cumpriam as suas obrigações. A temperatura do ar mostrava uma relação normal com a temperatura média anual, com as dos meses mais frio e mais quente e com a oscilação mensal aperiódica. O nascer e o pôr do Sol e da Lua, as fases desta última, de Vénus, dos anéis de Saturno e muitos outros fenómenos significativos correspondiam às previsões dos anuários da astronomia. O vapor de água no ar tinha atingido a sua tensão máxima e a humidade relativa era fraca. Para usar uma expressão que, apesar de um tanto antiquada, serve na perfeição para dar a realidade dos factos: era um belo dia de Agosto do ano de 1913. 
Os automóveis saíam de ruas estreitas e fundas para a luz clara e neutra das praças. As manchas escuras dos peões desenhavam cordões nebulosos. Nos pontos em que as linhas mais fortes dos mais apressados cruzavam os fluxos mais tranquilos, esses cordões engrossavam, escorriam depois mais depressa e, após algumas oscilações, retomavam o seu ritmo regular. Centenas de sons entreteciam-se num ruído metálico de onde saíam aqui e ali algumas pontas, arestas cortantes que se alongavam e retraíam, estilhaços de notas límpidas que logo se desvaneciam. Este ruído, cuja singularidade se não pode descrever, seria suficiente para que alguém, mesmo depois de muitos anos de ausência, pudesse reconhecer de olhos fechados que se encontrava em Viena, cidade capital e residencial do Império. As cidades, como os homens, reconhecem-se pelo passo. Abrindo os olhos, esse alguém tê-lo-ia confirmado pelo movimento das ruas, muito antes de descobrir qualquer outro pormenor característico. E se tivesse apenas imaginado que era capaz de o fazer, isso em nada alteraria as coisas...

Dom Quixote, 2008
(Ficção Universal)
trd. João Barrento
(lido em 2012)


O HOMEM SEM QUALIDADES I
(trd. Mário Braga)
(l. 2000)

O HOMEM SEM QUALIDADES IIA
(trd. Mário Braga)
(l. 2000)


O HOMEM SEM QUALIDADES VOL.II
(1933)

Quando, ao cair da noite desse mesmo dia, Ulrich chegou a... e saiu da estação, o que viu à sua frente foi uma praça larga mas pouco funda, de cujas extremidades saíam duas ruas, e que teve um efeito quase doloroso sobre a sua memória, como acontece com uma paisagem muitas vezes vista e já esquecida. 
«Asseguro-lhe que os rendimentos baixaram vinte por cento e o custo de vida subiu vinte por cento: são quarenta por cento!» «E eu garanto-lhe que uma corrida de bicicletas como a dos Seis Dias é um acontecimento que une os povos!» Estas vozes saíam-lhe agora dos ouvidos, vozes de compartimento de carruagem. Depois, ouviu distintamente dizer: «Mesmo assim, para mim não há nada como a ópera!» «É o seu desporto favorito?» «Não, é uma paixão.» 
Inclinou a cabeça como se tivesse de deixar sair água dos ouvidos. O comboio estava cheio e a viagem fora longa. Gotas das conversas que fora absorvendo durante a viagem vinham agora ao de cima. Ulrich ficara à espera, no meio da alegria e da pressa da chegada que a saída da estação despejava na praça como um cano aberto, até que as últimas gotas se escoassem, e agora estava ali, no vácuo de silêncio que se seguiu à algazarra. Ao mesmo tempo que aquela zoada lhe provocava uma certa perturbação nos ouvidos, abria-se diante dos seus olhos uma tranquilidade pouco habitual. Tudo o que era visível se mostrava mais nítido do que de costume, e ao olhar para o outro lado da praça, as vulgares cruzetas das vidraças recortavam-se tão negras no crepúsculo, sobre o brilho leitoso dos vidros, que dir-se-ia estar a ver as cruzes do Gólgota.

Dom Quixote, 2008
(Ficção Universal)
trd. João Barrento
(l. 2012)


O HOMEM SEM QUALIDADES IIB
(trd. Mário Braga)
(l. 2000)