Uma Certa Aversão: O Tango de Satanás


O TANGO DE SATANÁS
LÁSZLÓ KRASZNAHORKAI
(1985)

Uma manhã de finais de Outubro, pouco antes de as primeiras bátegas das intermináveis e impiedosas chuvas de Outono começarem a cair no solo gretado e salino, a oeste da exploração (antes de um mar de lama pútrida tornar intransitáveis os caminhos vicinais e deixar inacessível também a cidade até às primeiras geadas), Futaki acordou ao toque dos sinos. Mais próxima, cerca de quatro quilómetros para sudoeste, junto às antigas terras dos Hochmeiss, erguia-se uma ermida solitária, mas essa não só não tinha sino, como o próprio campanário ruíra durante a guerra, e a cidade estava demasiado longe para que ali chegasse algum som. Além disso, esse repique de sinos, essa revoada de sons triunfais parecia não muito distante («Como se os toques viessem dos lados do moinho...»), mais parecendo que o vento os arrastara até ali. Apoiou-se na almofada para olhar pelo postigo da janela da cozinha, mas, para lá do vidro meio embaciado, banhado no azul da aurora e no eco moribundo das badaladas, a cooperativa mantinha-se silenciosa e impassível: do outro lado, no meio das casas dispersas, somente a cortina da janela do doutor filtrava luz, pois havia largos anos que ele era incapaz de dormir na escuridão. Susteve a respiração para não perder um único, desgarrado e diluído toque, naquele rebate de sinos, porque gostaria de conhecer a verdade («É evidente que ainda dormes, Futaki...»), e por isso qualquer som, por mais ténue e remoto, lhe era necessário. Nos seus lendários passos de felino, coxeou no gélido chão de ladrilhos da cozinha («Mas, então, mais ninguém está acordado? Ninguém ouve? Mais ninguém?»), abriu as portadas da janela e debroçou-se.

Antígona, 2018
trd. Ernesto Rodrigues
prf. Rogério Casanova
(lido em 2022)