Uma Certa Aversão: Os Sonâmbulos

OS SONÂMBULOS
Trilogia Romanesca
HERMANN BROCH
(1930-32)
Em 1888, o senhor von Pasenow tinha setenta anos e havia pessoas que experimentavam um sentimento de repulsa estranho e inexplicável quando o viam aproximar-se nas ruas de Berlim e que, levadas por essa repulsa, afirmavam até que este velho era de certeza uma pessoa malvada. Baixo, mas bem proporcionado, sem ser um idoso escanzelado nem um pote de banha: era muito bem apessoado e o chapéu alto que costumava usar em Berlim não lhe dava um aspecto minimamente ridículo. Usava a barba à maneira do imperador Guilherme I, mas mais aparada, e, nas suas faces, não se via nada da lanugem branca que dava ao imperador um ar bonacheirão; mesmo o cabelo, quase sem entradas, só apresentava alguns fios brancos; apesar dos seus setenta anos, o cabelo mantivera o louro da juventude, aquele louro avermelhado que faz lembrar palha a apodrecer e que, na verdade, não fica bem a um homem idoso, que seria mais agradável imaginar com uma cabeleira mais digna. Mas o senhor von Pasenow estava habituado à cor do seu cabelo e mesmo o monóculo de maneira nenhuma lhe parecia demasiado juvenil. Quando olhava para o espelho, reconhecia o mesmo rosto que, cinquenta anos antes, o olhara de volta. Mas, se o senhor von Pasenow não estava destarte insatisfeito consigo próprio, a verdade é que há pessoas a quem o aspecto exterior deste velho desagrada e que também não são capazes de compreender que alguma vez tenha havido uma mulher a olhar para este homem com olhos desejosos, a abraçá-lo com paixão, e o máximo que estão dispostas a conceder-lhe são as criadas polacas da sua herdade, na suposição de que ele as tenha abordado com aquela agressividade um pouco histérica e, no entanto, despótica que muitas vezes é própria de homens pequenos. Fosse isto verdade ou não, era, pelo menos, a opinião dos seus dois filhos, da qual, evidentemente, nunca teria comungado. Além disso, a opinião dos filhos muitas vezes é subjectiva e seria fácil acusá-los de injustiça e parcialidade, apesar do sentimento algo incómodo com que se pode ficar dominado à vista do senhor von Pasenow, uma incomodidade estranha que ainda aumenta quando o senhor von Pasenow já passou e se fica, por acaso, a segui-lo com a vista. Talvez isso se deva a que, assim, se fica sem a mínima certeza quanto à idade deste homem, uma vez que ele não se move como um velho nem como um jovem, nem como um homem na força da vida. E, como a dúvida gera mau humor, não é impossível que um dos transeuntes sinta que essa maneira de andar é pouco digna e não será caso para admirar que se ponha então a escarnecer dela como arrogante e vulgar, como prova de uma afoiteza débil e de uma correcção presunçosa. É uma questão de temperamento, evidentemente; mas é fácil de imaginar que um jovem cego pelo ódio queira regressar atrás a correr para enfiar uma bengala entre as pernas daquele que vai a andar assim, fazê-lo cair seja como for, partir-lhe as pernas, destruir para sempre uma tal maneira de andar. Ele, porém, caminha com um passo muito rápido e rectilíneo, de cabeça erguida, como é costume das pessoas pequenas, e, como vai também todo empertigado, projecta a barriguinha um pouco para diante, quase poderia dizer-se que a transporta à sua frente, mais até, que leva assim toda a sua pessoa para algures, uma prenda desconchavada que ninguém quer. Simplesmente, como um símile não explica nada, impropérios assim não têm fundamento e talvez uma pessoa se arrependa deles enquanto não descobre a bengala junto às pernas. A bengala move-se ritmicamente, eleva-se quase à altura dos joelhos, descansa no chão com uma breve pancada seca e ergue-se de novo, com os pés a acompanhar. E também estes se erguem mais do que é costume, a ponta do pé vai virada um bocadinho de mais para fora, como se, por desprezo pelas pessoas que passam, quisesse mostrar-lhes a sola do sapato, e o tacão pousa na calçada com uma breve pancada seca. Assim, pernas e bengala vão lado a lado e é fácil imaginar que, se aquele homem tivesse vindo ao mundo como um cavalo, teria sido um cavalo marchador; mas o mais terrível e mais repugnante é que é um marchador de três pernas, uma trípode que se pôs em movimento. E é horrível pensar que esta intencionalidade de três pernas tem de ser tão falsa como esta linearidade e este impulso de avançar: dirigida para o nada! Pois ninguém com intenções sérias anda assim e se, por um momento, não pode deixar de pensar-se num agiota que vai à casa do pobre para cobrar dívidas à força, sabemos, mesmo assim, de imediato que isto seria demasiado pouco e demasiado terreno, aterrados com o reconhecimento de que é assim que o demónio faz as suas deambulações, um cão que manqueja sobre três patas, que este é um andar a direito em ziguezague... basta; tudo isto se pode descobrir quando se disseca a forma de andar do senhor von Pasenow com um ódio extremoso. Mas, no fim de contas, isso é uma coisa que pode tentar-se com a maior parte das pessoas. Há sempre algo que bate certo. E, se é verdade que o senhor von Pasenow também não andava sempre esbaforido, pelo contrário, ocupava tempo de sobra a cumprir as obrigações decorativas e outras que um rendimento tranquilo e seguro acarreta, ele era sempre em tudo — estava-lhe na massa do sangue — uma pessoa atarefada e não lhe passava pela cabeça andar propriamente a flanar. E, quando vinha a Berlim, duas vezes ao ano, não tinha mãos a medir. Neste momento, estava a caminho para se encontrar com o filho mais novo, o primeiro-tenente Joachim von Pasenow.
Relógio d'Água, 2018
(Ficções)
trd. António Sousa Ribeiro

OS SONÂMBULOS VOL.III
Huguenau ou o Realismo
(1932)
(trd. Jorge Camacho)
(lido em 2008; 2021)

OS SONÂMBULOS VOL.II
Esch ou a Anarquia
(1931)
(trd. Jorge Camacho)
(l. 2007; 2020)

OS SONÂMBULOS VOL.III
Pasenow ou o Romantismo
(1930)
(trd. Jorge Camacho)
(l. 2007; 2020)