Uma Certa Aversão: Viagem ao Fim da Noite


VIAGEM AO FIM DA NOITE
LOUIS-FERDINAND CÉLINE
(1932)

Isto começou assim. Eu cá nunca tinha dito nada. Nada. Foi o Arthur Ganate quem me fez falar. Arthur, estudante, de Medicina como eu, um camarada. Encontrámo-nos, por sinal, na Praça de Clichy. Era depois do almoço. Quer-me falar. Ponho-me a ouvi-lo. «A gente não fica cá fora!» — diz-me assim. «Vamos entrar!» E pronto, entro com ele. «Esta, esplanada» — começa por dizer — «é para os que armam ao fino! Vem por aqui!» Reparamos ainda que as ruas estão desertas por causa do calor; nem um carro, nada. Quando faz muito frio também não, não há ninguém nas ruas. Foi ele próprio, lembra-me bem, que a tal respeito me disse: «Os habitantes de Paris dão sempre a impressão de estarem ocupados, mas na verdade passeiam de manhã à noite; a prova é que, se não está tempo bom para passear, muito frio ou muito quente, já ninguém os vê; todos metidos no buraco a tomarem cafés com natas e cervejas. Assim mesmo! Século da velocidade! —, afirmam. Onde está ela? Grandes transformações! — dizem eles. Como? Na realidade nada mudou. Continuam a admirar-se e pronto. E também isto não é novo. Palavras, e assim mesmo não muitas das palavras é que mudaram! Duas ou três aqui e ali, insignificantes...» Então, muito orgulhosos por termos feito repicar estas verdades úteis, ali continuámos sentados, encantados, a olhar para as mulheres do café.
 Depois a conversa recaiu sobre o presidente Poincaré que ia inaugurar, precisamente naquela manhã, uma exposição de cãezinhos; e então, palavra puxa palavra, o Temps onde aquilo vinha escrito: «Olha, aí tens um senhor jornal, o Temps!»  — serrazinou-me o Arthur Ganate a propósito. — «Não existem dois como ele a defender a raça francesa!» «E bem precisa disso, a raça francesa, uma vez que não existe!» — respondi taco a taco para mostrar, eu, que estava documentado. 
— Qual quê! Existe uma! E bela raça! — insistia. — Por sinal a mais bela raça do mundo, e bem corno é quem se desdisser! — Vai daí, desata a berrar comigo. Aguentei firme, pois claro. 
— Não é verdade! A raça, aquilo a que chamas raça, só é este grande amontoado de lazarentos do meu género, ramelosos, pulgosos, tiritantes, que vieram encalhar aqui perseguidos pela fome, pela peste, pelos tumores e pelo frio, que chegaram vencidos dos quatro cantos do mundo. Não podiam ir mais longe por causa do mar. A França é isto, e são estes os Franceses. 
— Bardamu — disse ele assim em tom grave e algo triste —, os nossos pais eram dignos de nós, não digas mal deles!... 
—Tens razão, Arthur, nesse ponto tens razão! Rancorosos e dóceis, violados, roubados, estripados e sempre cobardolas, eram dignos de nós! Bem podes dizê-lo! Nunca mudamos! Nem de peúgas, nem de donos, nem de opiniões, ou fazemo-lo tão tarde que já não vale a pena. Nascemos fiéis e disso morremos! Soldados gratuitos, heróis perante todos e macacos falantes, palavras que doem, nós cá somos os favoritos do Rei Miséria. É ele quem nos possui! Quando não temos juízo, aperta... Temos os dedos dele à volta do pescoço, sempre, o que dificulta a fala, e devemos tomar muita cautela se estivermos interessados em poder comer... Por um nada estrangula-nos... Não é vida... 
— Há o amor, Bardamu! 
— Arthur, o amor é o infinito posto à mão dos cãezinhos, e eu cá tenho a minha dignidade! — respondo-lhe. 
 — Sabes o que penso de ti? És um anarquista, e está tudo dito! 
Sempre sempre um causticozinho, já estão mesmo a ver, e tudo quanto havia de avançado em opiniões. 
 — Já o disseste, ó pachola, que sou anarquista! E a melhor prova é eu ter composto uma espécie de oração vingadora e social da qual vais já dizer-me o que pensas: As Asas de Ouro!, é o título!... — E então recito-lhe: «Um Deus que conta os minutos e os tostões, um Deus desesperado, sensual e rezingão como um porco. Um porco com asas de ouro, que caí por todo o lado, de barriga para o ar e à cata de festinhas, é ele, é o nosso senhor. Abracemo-nos!»

Babel (Ulisseia), 2014
trd. apr. Aníbal Fernandes  


VIAGEM AO FIM DA NOITE
(lido em 1998)