Ventos do Sul: Frankie e o Casamento

FRANKIE E O CASAMENTO
CARSON MCCULLERS
(1946)
Aconteceu naquele Verão verde e absurdo quando Frankie tinha doze anos. Este foi o Verão em que, há muito, ela não era sócia de nada. Não pertencia a nenhum clube, não era sócia de nada no mundo. Frankie tornara-se uma pessoa desvinculada que rondava pelas portas, e tinha medo. Em junho as árvores eram de um verde vivo estonteante mas, mais tarde, as folhas escureceram e a cidade tornou-se negra e encolhida sob o brilho ofuscante do sol. A princípio Frankie andava de um lado para o outro, fazendo urna coisa aqui, outra ali. Os passeios da cidade estavam cinzentos de manhã cedo e à noite, mas o sol do meio-dia deixava-os lustrosos, de forma que o cimento queimava e cintilava como vidro. Por fim, os passeios tornaram-se demasiado quentes para os pés de Frankie e, além disso, ela meteu-se em sarilhos. Meteu-se numa ensarilhada tão secreta que achou melhor ficar em casa — e em casa só havia Berenice Sache Brown e John Henry West. Sentavam-se os três à mesa da cozinha, repetindo vezes sem conta as mesmas coisas, de forma que, em agosto, as palavras começaram a rimar e a soar estranhas. O mundo parecia morrer todas as tardes, e já nada se movia. Por último, o Verão era como um sonho verde agoniante, ou como uma selva silenciosa e absurda, debaixo de vidro. Então, na última sexta-feira de agosto, tudo mudou. foi tão súbito que Frankie esteve intrigada toda aquela tarde vazia, e mesmo assim não entendeu.
«É muitíssimo esquisito», disse. «A maneira como tudo aconteceu.»
«Aconteceu? Aconteceu o quê?» disse Berenice.
John Henry escutava e observava-as em silêncio.
«Nunca me senti tão intrigada.»
«Intrigada com o quê?»
«Com tudo isto», disse Frankie.
E Berenice comentou: «Acho que o sol te fritou os miolos.»
«Eu também acho», sussurrou John Henry.
A própria Frankie quase admitiu que talvez fosse verdade. Eram quatro horas da tarde e a cozinha estava quadrada, cinzenta e sossegada. Sentada à mesa, com os olhos meio fechados, Frankie pensava num casamento. Via uma igreja silenciosa, uma neve estranha caindo enviesada contra os vitrais. O noivo deste casamento era seu irmão, e no lugar onde devia estar a cara dele havia apenas um clarão. A noiva estava lá, com uma cauda branca comprida, e a noiva também não tinha cara. Havia alguma coisa neste casamento que dava a Frankie uma sensação que não sabia como nomear.
«Olha cá para mim», disse Berenice. «Estás com ciúmes?»
«Com ciúmes?»
«Com ciúmes porque o teu irmão se vai casar?»
«Não», disse Frankie. «Só que eu nunca vi duas pessoas como eles. Hoje, quando entraram aqui em casa, foi muito esquisito.»
«Estás com ciúmes», disse Berenice. «Vai ver-te ao espelho. Percebe-se pela cor dos teus olhos.»
Na cozinha havia um espelho baço, pendurado por cima da pia. Frankie olhou-se, mas tinha os olhos tão cinzentos como sempre. Tinha crescido tanto este Verão que
era quase uma aberração enorme, com os ombros estreitos, as pernas demasiado compridas. Vestia uns calções azuis, uma camisola interior, e estava descalça. O cabelo fora cortado como o de um rapaz, mas não era aparado há muito tempo, e agora nem sequer tinha risco. O reflexo no espelho era retorcido e deformado, mas Frankie sabia muito bem que aspecto tinha; levantou o ombro esquerdo e virou a cabeça para o lado.
«Ah», disse. «Eram as duas pessoas mais bonitas que eu já vi. Só não consigo entender como é que aconteceu.»
«Mas o quê, palerma?» disse Berenice. «O teu irmão veio a casa com a rapariga com quem pretende casar, e hoje almoçou contigo e com o teu Papá. Pretendem casar-se na casa dela, em Winter Hill, no domingo que vem. Tu e o teu Papá vão ao casamento. E pronto, o assunto resume-se a isto. Portanto, o que é que te preocupa?»
«Não sei», disse Frankie. «Aposto que não passam um minuto sem se divertirem.»
«Vamo-nos divertir também», disse John Henry.
«Nós, divertirmo-nos?» perguntou Frankie. «Nós?»
Cotovia. 1995
trd. Daniel Gonçalves
(lido em 2004)