Ventos do Sul: O Mundo é dos Violentos


O MUNDO É DOS VIOLENTOS
FLANNERY O'CONNOR
(1960)

O tio de Francis Marion Tarwater morrera havia apenas meio dia e já o rapaz estava demasiado bêbado para acabar de cavar a sepultura, pelo que foi um negro chamado Buford Munson, que tinha vindo encher um cântaro, quem a concluiu e retirou o corpo da mesa do pequeno-almoço onde estava ainda e o sepultou de forma cristã e decente, com o sinal do Salvador no topo da sepultura e bastante terra por cima para evitar que os cães, escavando, a pusessem a descoberto. Buford viera por volta do meio-dia e, quando se foi embora, ao sol-pôr, o rapaz, Tarwater, continuava sem se mexer. 
O velho era tio-avô de Tarwater, ou dizia que era, e, tanto quanto a criança se lembrava, sempre tinham vivido juntos. O tio dissera-lhe que tinha setenta anos de idade na altura em que tomou a seu cargo a educação dele; tinha oitenta e quatro quando morreu. Tarwater concluiu daí que devia ter catorze anos. Ele tinha-lhe ensinado os números, a ler, a escrever e ensinara-lhe história começando por Adão expulso do Paraíso, passando pelos presidentes até Herbert Hoover e por aí fora, tecendo considerações sobre a Reincarnação e o Dia do Juízo. Para além de lhe ter dado uma boa educação, tinha-o afastado do seu único outro parente, o sobrinho do velho Tarwater, um professor primário que, na altura, não tinha filhos e que pretendia que este filho da sua finada irmã crescesse segundo as suas ideias.
O velho estava ao corrente dessas suas ideias. Vivera durante três meses em casa do sobrinho, daquilo que ele pensara na altura ser Caridade, mas o que disse ter descoberto não foi nada que se parecesse com Caridade. Durante todo o tempo que lá viveu, o sobrinho estudara-o em segredo. Ele, que o acolhera em nome da Caridade, tinha prescrutado subrepticiamente a sua alma fazendo-lhe perguntas com segundo sentido, espalhando armadilhas por toda a casa e observando-o a cair nelas, e, finalmente aparecendo com um estudo escrito sobre ele para uma revista de professores. A pestilência do seu comportamento chegara ao céu e o próprio Deus resgatara o velho. Fizera-o ter uma visão e dissera-lhe para partir com o órfão para o mais recôndito da floresta e criá-lo aí a fim de alcançar a sua Salvação. O Senhor prometera-lhe longa vida e ele arrebatara o bébé ao professor e levara-o para a clareira de Powderhead, a que tinha direito enquanto vivesse. 
O velho, que se dizia profeta, criou o rapaz na expectativa do chamamento do Senhor e, para o dia em que o escutasse, preparou-o para os males que sucedem aos profetas; para aqueles que provêm do mundo, que são insignificantes, e para os que vêm do Senhor e purificam o profeta; porque ele próprio tinha sido repetidamente purificado — aprendera pelo fogo. 
Fora chamado na sua juventude e partira para a cidade a fim de proclamar a destruição que estava destinada a um mundo que abandonara o seu Salvador. Proclamou, no meio da sua fúria, que o mundo veria o Sol explodir em sangue e fogo — e enquanto ele ameaçava e esperava, o Sol nascia todas as manhãs, calmo e igual a si próprio como se não apenas o mundo mas o próprio Senhor tivessem ignorado a mensagem do profeta. Nascia e punha-se, nascia e punha-se num mundo que mudava de verde para branco, de verde para branco e de verde para branco de novo. Nascia e punha-se e ele desesperava que o Senhor o ouvisse. Então, uma manhã, para seu júbilo, viu uma língua de fogo saída do Sol e antes
que pudesse voltar-se, antes que conseguisse gritar, o fogo tocou-o e a destruição que ele esperava precipitou-se no seu próprio cérebro e no seu próprio corpo. Foi o seu sangue que secou e não o do mundo. 

Fragmentos, 1988
(Romance)
trd. Ana Isabel Palma da Silva
e Rui Jorge Cruz
(lido em 2024)