Viajantes: A Missa do Galo

A MISSA DO GALO

PAUL BOWLES

(1981)

A Missa do Galo

Chegou a Tânger ao meio-dia e foi direito a casa. Com chuva, o pátio exterior era pouco atraente. Várias bananeiras tinham deixado cair os seus frutos que apodreciam sobre o chão de ladrilhos. Quando a velha Amina, ao vê-lo da porta da cozinha, veio saltitando sobre os charcos para o cumprimentar, já ele reparara nos montes de caixas de cartão vazias e na silhueta de um velho baloiço de jardim atrás dela. 

Ao almoço saboreou a sua infância na sopa de Amina. A receita não mudara: continuavam a predominar a abóbora-menina e o cominho. Bruscamente, sentiu um vento frio atravessar o quarto. Chamou Amina: a grande janela da cozinha estava partida. Ele recordou-lhe que tinha enviado dinheiro para a reparar. Mas o vento voltou a parti-la, disse ela, e desta vez deixaram-na assim. Pediu-lhe para fechar a porta da cozinha. Quando ela a fechou, pouca ou nenhuma diferença se notava. 

Dirigiu-se aos quartos. Da casa que existira pouco mais restava do que as paredes. A maior parte dos móveis desaparecera e não havia tapetes nem cortinas. Quando descobriu que nenhuma das chaminés funcionava, começou a duvidar que a casa servisse para passar as férias de Natal — pelo menos, naquele ano. Era a única herança que recebera de sua mãe, e mesmo assim, de má vontade. «Não precisas da casa de Tânger. Nunca a utilizarás.» «Mas eu gosto dela —, objectara ele. — No fim de contas foi lá que cresci.» Quando lha deixou, sua mãe retirou tudo o que a casa continha de valor. Um tapete para um amigo, uma cómoda para outro, uma arca para alguém, de modo que, na altura em que morreu, a casa devia estar sensivelmente como agora. Durante os oito anos decorridos desde a sua morte, repetidas vezes a sua mulher insistira para que «fizesse o inventàrio» da casa, mas como o interesse dela tinha sobretudo a ver com a ideia de a vender, coisa que jamais lhe passar pela cabeça, não fizera absolutamente nada.

Assírio & Alvim, 1990

(O Imaginário)

trd. José Agostinho Baptista

(lido em 2004; 2023)