Viajantes: O Cônsul Honorário


O CÔNSUL HONORÁRIO
GRAHAM GREENE
(1973)

O doutor Eduardo Plarr estava de pé no pequeno porto sobre o Paraná, entre a balaustrada e os guindastes amarelos, a observar um penacho horizontal de fumo por cima do Chaco. Entre as barras vermelhas do sol-poente, o fumo era como uma faixa numa bandeira nacional. O doutor Plarr achava-se só, a essa hora, além do único marinheiro que estava de guarda ao edifício marítimo. Um fim de tarde que, por qualquer combinação misteriosa da frouxidão da luz e do cheiro de alguma planta irreconhecida, traz a certos homens percepções da infância e de coisas futuras, e a outros a sensação de algo perdido e quase esquecido. 
A balaustrada, os guindastes, o edifício marítimo fora o que o doutor Plarr primeiro vira do seu país adoptivo. Os anos nada tinham mudado, apenas acrescentaram a linha de fumo que, quando ele ali chegara, ainda não pendia no horizonte, na ponta extrema do Paraná. A fábrica que o produzia não estava ainda construída na ocasião, mais de vinte anos atrás, em que descera da república nortenha, com a mãe, no barco semanal do Paraguai. Lembrava-se do pai, de pé, no cais em Asunción, junto do curto portaló do pequeno barco fluvial — um homem alto e grisalho, de peito metido para dentro, a prometer-lhes, com um optimismo convencional, que bem depressa se reuniria a eles. Dentro de um mês — ou talvez três — a esperança rangera-lhe na garganta qual peça de ferrugento mecanismo.
 Não parecera estranho ao rapaz de catorze anos, apenas
talvez um hábito estrangeiro, o pai ter beijado a mulher na testa com uma espécie de reverência, como se ela fosse sua mãe e não companheira de cama. O doutor Plarr considerava-se, nesse tempo, tão espanhol como a mãe, enquanto o pai era bem perceptivelmente inglês, pois pertencia, por direito e não simplesmente por passaporte, à lendária ilha de neve e nevoeiro, pátria de Dickens e de Conan Doyle, ainda que tivesse provavelmente guardado poucas memórias genuínas da terra que deixara aos dez anos de idade. Conservava um livro ilustrado que os pais lhe tinham comprado momentos antes do embarque, — Panorama de Londres — e Henry Plarr costumava folhear para o filho, Eduardo, as páginas de fotografias cinzentas que mostravam o Palácio de Buckingham, a Torre de Londres e uma vista de Oxford Street, cheia de carruagens e de senhoras a agarrar as saias compridas. O pai, segundo o doutor Plarr compreendera muito mais tarde, era um exilado num país de exilados — italianos, checos, polacos, galeses, ingleses.

Círculo de Leitores, 1974
trd. Maria Ondina Braga
(lido em 2008)