Viajantes: Um Cado Arrumado


UM CASO ARRUMADO
GRAHAM GREENE
(1960)

O passageiro do camarote escreveu no seu diário uma paródia ao pensamento de Descartes: «Sinto-me desconfortável, portanto estou vivo», e depois ficou com a caneta suspensa, sem lhe ocorrer mais nada. O capitão, vestindo uma sotaina branca, postara-se junto das vigias escancaradas do salão a ler o breviário. O ar imóvel nem lhe conseguia agitar os pêlos da barba. Navegavam os dois juntos e sozinhos no rio havia dez dias — sozinhos se exceptuarmos os seis membros da tripulação africana ou a dúzia de passageiros de coberta que iam mudando, quase imperceptivelmente, em cada aldeia onde faziam escala. O barco, que pertencia ao bispo, assemelhava-se a um pequeno e maltratado vapor de rodas do Mississipi, com uma superstrutura alta do século XIX, a tinta branca a pedir urgentemente renovação. Pelas vigias do salão podiam ver o rio a desdobrar-se interminavelmente diante deles, e mais abaixo, nos porões, os passageiros sentavam-se e iam arranjando o cabelo no meio da lenha destinada às caldeiras. 
Se a imobilidade significa paz, isto era certamente paz, uma paz que se encontrava como uma noz no meio da dura carapaça do desconforto — o calor que os cercava quando o rio se apertava para uns cem metros e o chuveiro sempre quente das caldeiras: à noite os mosquitos e de dia as moscas tsé-tsé, com as asas recuadas como miniaturas de caças a jacto (um letreiro na margem, junto da última aldeia onde tínhamos passado, prevenira-os em três línguas: «Zona da doença do sono. Cuidado com as moscas tsé-tsé»). O capitão lia o seu breviário com um enxota-moscas na mão, e sempre que matava um insecto levantava o pequeno cadáver para mostrá-lo ao passageiro, dizendo «tsé-tsé», o que era quase o limite de comunicação oral porque nenhum deles falava a língua do outro com facilidade ou exactidão.

Ulisseia, 1977
(Clássicos do Romance Contemporâneo)
trd. Henrique de Medeiros
(lido em 2019)