Viajantes: Viagens

VIAGENS
PAUL BOWLES
(1950-93)
«Assim que se chega ao Saara, seja pela primeira ou pela décima vez, atenta-se na imobilidade. Um silêncio incrível, absoluto, prevalece fora das povoações; e dentro destas, mesmo em locais de azáfama, como os mercados, há nos ares uma qualidade de silencioso recato, como se a pacatez fosse uma força consciente que, ressentindo-se da intrusão do som, minimizasse e dispersasse o som de imediato. Seguidamente há o céu, comparado com o qual todos os outros céus parecem esforços de corações débeis. Sólido e luminoso, ele é sempre o ponto focal da paisagem. Ao crepúsculo, a sombra precisa, encurvada, da Terra ergue-se para ele rapidamente no horizonte, dividindo-o em secção luminosa e secção escura. Quando toda a luz do dia já desapareceu e o espaço está pejado de estrelas, ele continua a ser de um azul intenso e ardoroso, mais escuro directamente por cima e empalidecendo em direcção à Terra, pelo que a noite realmente nunca se torna escura.
Deixa-se o portão do forte ou da povoação para trás, passa-se pelos camelos deitados cá fora, sobe-se ao alto das dunas, ou sai-se para a planície dura e pedregosa e fica-se algum tempo em pé, a sós. Daí a pouco, ou se estremece e se regressa a correr para dentro das muralhas, ou se continua ali em pé e se permite que nos aconteça algo de muito peculiar, algo que toda a gente que aqui vive já sofreu, e ao qual os franceses chamam le baptême de la solitude. É uma sensação única, e nada tem a ver com a solidão, pois a solidão pressupõe memória. Aqui, nesta paisagem inteiramente mineral iluminada por estrelas que parecem clarões, até a memória desaparece; nada resta a não ser a nossa própria respiração e o som do bater do nosso coração. Um estranho, e indubitavelmente agradável, processo de reintegração começa dentro de nós, e temos a opção de lutar contra ele, e de insistir em permanecer a pessoa que sempre fomos, ou de o deixar seguir o seu curso. Pois ninguém que haja ficado no Saara durante algum tempo é exactamente o mesmo que quando ali chegou.
(...)
Talvez a pergunta lógica a fazer neste ponto seja: porquê ir? A resposta é que quando um homem já lá esteve e sofreu o baptismo da solidão não consegue evitá-lo. Caso alguma vez tenha estado sob o feitiço do vasto, luminoso e silencioso território, nenhum outro lugar é suficientemente forte para ele, nenhumas outras cercanias conseguem propiciar a supremamente satisfatória sensação de existir no meio de algo que é absoluto. Ele voltará lá, sejam quais forem os custos em conforto e em dinheiro, porque o absoluto não tem preço.»
«O Camião demorara catorze horas para ir de Kerzaz a Adrar e, à exceção da paragem para almoço no oásis de El Aougherout, o velho estivera o tempo todo sentado no chão sem se mexer, com as pernas dobradas por baixo de si, o capuz do seu albornoz puxado para cima do turbante de modo a proteger-lhe o rosto da fina poeira que se coava para cima através do piso. A passagem de primeira classe nos veículos da Compagnie Générale Transsaharienne autorizava o utente a viajar dentro do compartimento envidraçado com o condutor, e era aí que eu ia sentado, virando-me para trás de vez em quando para olhar através das vidraças enfarruscadas a figura solitária que continuava tranquilamente sentada na traseira, no meio do tornado de poeira. Ao almoço, quando já lhe vira o rosto com os seus ardentes olhos castanhos e a magnífica barba branca, ocorreu-me que ele parecia um elegante e muito sério Pai Natal.
A poeira tornou-se pior durante a tarde, pelo que ao crepúsculo, quando finalmente chegámos a Adrar, até o condutor e eu estávamos cobertos por ela. Eu saí e sacudi-me, e o velhote saiu a cambalear pela parte de trás, com cascatas de pó caindo-lhe das vestes. Depois veio até à frente do camião para falar com o condutor, o qual, sendo um bom muçulmano, queria ir tomar um duche e lavar-se. Infelizmente além de ser um dos bons era um muçulmano citadino, pelo que se impacientou com a comedida cadência do discurso do seu conterrâneo e subitamente bateu com a porta, sem se aperceber de que a mão do idoso estava no caminho.
Com tranquilidade, o velho abriu a porta com a outra mão. Aponta do dedo médio dele pendia de um pedaço de pele. Mirou-a por um instante, depois apanhou serenamente uma mão-cheia daquela poeira ubíqua, juntou as duas pontas do dedo e deitou a poeira sobre este, dizendo baixinho: — Dêmos graças a Alá. — Dito isso, sem que a expressão do seu rosto alguma vez se alterasse, pegou no seu fardo e no bordão e foi-se embora a caminhar. Fiquei a olhar para ele, admiradíssimo, e a refletir na diferença entre o seu comportamento e aquele que teria sido o meu nas mesmas circunstâncias. Não se mostrar qualquer sinal exterior de dor já é assaz invulgar, mas não expressar qualquer ressentimento contra a pessoa que nos feriu parece muito estranho, e dar graças a Deus por um tal momento é o retoque mais estranho de todos.
Manifestamente, exemplos de um comportamento tão estoico não se encontram todos os dias, ou eu não me teria lembrado deste; a minha experiência desde então, porém, mostrou-me que ele não é atípico, e que permaneceu comigo e se transformou num símbolo daquilo que é admirável no povo do Norte de África. — Este mundo que vemos é tão pouco importante e tão efémero como um sonho dizem eles. — Levá-lo a sério seria uma absurdez. Pensemos antes nos céus que nos rodeiam. — E a paisagem é atreita a reflexões acerca da natureza do infinito. Noutras partes de África tem-se consciência da terra que está por baixo dos nossos pés, da vegetação e dos animais; todo o poder parece concentrado na terra. No Norte de África a terra torna-se a parte menos importante da paisagem porque damos por nós constantemente a levantar os olhos para mirar o céu. Quando já compreendemos isso, não intelectualmente mas emocionalmente, também compreendemos porque é que a grande trindade de religiões monoteístas — judaísmo, cristianismo e islão, que mudaram a fonte do poder da Terra propriamente dita para os espaços exteriores à Terra — evoluiu em regiões desérticas. E entre as três é o islão, talvez por ser a religião de evolução mais recente, que opera mais diretamente e com maior força sobre as ações quotidianas daqueles que a abraçam.»
Quetzal, 2018
(Serpente Emplumada | Paul Bowles)
trd. Jorge Pereirinha Pires
(lido em 2025)