Vida, Mode de Usar: O Adeus a Federico Sanchez

O ADEUS A FEDERICO SANCHEZ
JORGE SEMPRÚN
(1993)
Do Regressom à Cidade da Minha Infância
Os carros estacionavam ao longo do passeio.
Houve um barulho de rápido abrir e fechar de portas, o aparato do corpo de guardas. Um pouco mais longe, um voo vacilante de pombos num sol de Julho que abraçava toda a rua e a esmagava com uma luz intensa.
Tínhamos chegado.
Olhava em meu redor sem querer acreditar no que os meus olhos viam. Teria podido desatar a rir, não forçosamente um riso de alegria. Rir sobretudo da absurda brincadeira da existência. Mas talvez a coincidência que assim se manifestava não fosse absurda e nem fosse propriamente uma brincadeira. Pelo contrário, talvez tudo isto estivesse cheio de sentido.
A verdade é que tínhamos chegado à Rua Alfonso XI, no Bairro do Retiro, e estacionado no lado ímpar da rua, mesmo em frente ao prédio com o n.° 12. Eu olhava a porta e as janelas do 4.° andar. Tudo o que lá existia, pelo menos tudo o que existira por detrás dessas janelas, me era familiar: as salas, a forma como estavam dispostas ao longo do corredor que terminava por um ângulo à direita e ia alinhar paralelamente com a Rua Juan de Mena, uma transversal. A verdade é que o corredor desse 4.° andar de portadas fechadas (para proteger do calor? ou estaria o apartamento vazio?) era interminável apenas na minha recordação, uma recordação de infância. Eu explico: era nesse apartamento, junto do qual o carro oficial me deixara, que eu tinha passado a minha infância.
Um pouco antes, o ministro que tinha a seu cargo as relações com o Parlamento e o secretariado do governo viera apanhar-me ao Palace, o hotel onde eu estava a morar provisoriamente. Queria mostrar-me um apartamento, ainda em obras, e que, na sua opinião, talvez me conviesse. O trajecto fora breve. Os carros tinham-se dirigido para a Praça de Neptuno, do lado do Museu do Prado, para em seguida passarem diante do monumento aos mortos e subirem a Rua Juan de Mena. E aí estávamos nós, chegáramos à Rua Alfonso XI.
Parecia que o círculo se tinha fechado.
Deixara esta rua numa manhã de Julho, em 1936, na altura das férias de Verão, há uma vida inteira: meio século atrás. Diz-se de uma só vez, escreve-se em poucas palavras. Mas como «meio século» pesa na memória da alma e do corpo!
No dia seguinte a essa partida para férias, o Exército de África e as principais guarnições da Península amotinaram-se contra o governo da República. Apenas tivemos tempo para chegar a Lekeitio, uma aldeia de pescadores no País Basco, depois de termos atravessado algumas cidades — Burgos, Vitória — onde já era perceptível a efervescência militar.
Em Lekeitio, as praias de areia oceânica estavam praticamente desertas nesse Verão. As habituais famílias de veraneantes tinham optado por ficar em Bilbau ou em Madrid, muito provavelmente na esperança que a situação se definisse. E definira-se de facto, no sangue e no horror de uma longa guerra civil.
Teria podido desatar a rir, com efeito. Mas não forçosamente de alegria.
— Pronto, é aqui — dizia o ministro Zapatero.
Indicava-me a entrada do n.° 9 da rua, mesmo em frente da porta de entrada da minha infância.
Assim, meio século após ter deixado o Bairro do Retiro — o parque, o Prado, o jardim botânico, a Igreja de São Jerónimo, as avenidas residenciais, a mercearia de Santiago Cuenllas, o Hotel Gaylord's — após duas guerras, o exílio, Buchenwald, o comunismo, as mulheres, alguns livros, eis-me novamente de regresso ao ponto de partida.
Mas não tenho tempo para saborear este instante privilegiado e, de una certa forma, único. Não tenho tempo para parar e reflectir sobre esta vida, a minha, aberta completamente ao meu olhar: vertiginosamente transparente. A minha recordação mais longínqua está ligada a este lugar, a uma visita ao meu avô, Antonio Maura, que morava a dois passos da Rua Alfonso Xl, numa avenida que hoje tem o seu nome. Desde essa primeira recordação até este
dia de Julho de 1988, a minha vida inteira poder-se-ia desenrolar na minha memória. Bastaria abrir os olhos, manter-me imóvel e esperar que as imagens reaparecessem. Mas não tenho tempo. Esperam-nos os arquitectos, mestres-de-obras, assessores de gabinete, enfim, um sem número de pessoas para nos mostrar o apartamento que me é proposto.
Dou uma olhada à casa em frente. Tem um aspecto pouco cuidado. E, por causa disso, do seu aspecto vetusto, faz-me lembrar mais o tempo passado do que o passado em si mesmo. O passado é a infância; o tempo passado é o envelhecimento. A fachada desta casa acabara de ser rebocada e as portadas pintadas, precisamente antes da guerra civil. Mas a imagem da infância foi apagada pela patina do tempo: a casa da minha infância envelheceu como eu, comigo. Continuamos a ser contemporâneos, a viver ao mesmo nível no tempo imóvel, corroído pelo curso das coisas.
Volto-me e transponho a soleira do n.° 9 da Rua Alfonso XI.
Asa, 1995
(Clepsidra: Retratos & Memórias)
trd. M. Lourdes Figueiredo Castro
(lido em 1998; 2014)