Vida, Modo de Usar: Amado Mio


AMADO MIO 
precedido de 
ACTOS IMPUROS
PIER PAOLO PASOLINI
(1948, p.1982)

30 de Maio de 1946
É o aniversário de uma semana dilacerante. Faz agora um ano que estive quase a executar o gesto que a minha imaginação inconscientemente reproduz, quando me ponho a pensar no meu pecado: o gesto da minha mão que se ergue armada contra mim. Vejo-me estendido na cama, com a cara voltada para a parede... De vez em quando recobrava os sentidos, saía do meu estupor, uma espécie de paralisia que me fazia sentir afastado da minha existência. O Nisiuti tinha-me contado a sua confissão, na rua, em frente ao portão entreaberto. Foi o momento mais angustiante da minha vida. De repente, vi o Nisiuti muito longe, como se um vento súbito o tivesse arrancado do meu lado e o tivesse ido colocar a uma distância fabulosa, num sítio irreconhecível. Parecia-me falar num delírio, atento e até interessado na mais pequena inflexão da minha voz; mas a angústia e a cólera enfureciam-me contra ele. Agarrei-lhe o braço e arrastei-o para longe do casario; insultei-o a ele e à sua religião (o que no entanto não impedia de sentir-me injustamente atacado pelo destino através daquele inocente e de me comover com esta injusta fúria contra ele). Fi-lo repetir as palavras do padre; eu estava perdido. Acusei-o de me ter perdido; cheguei a dizer-lhe que, tendo ele tido a possibilidade de escolher entre o seu falso Deus e mim, ele me tinha excluído, e que esta escolha era a partir de agora irremediável. Disse estas palavras quase a chorar; foi para esconder as lágrimas e para obedecer a uma espécie de crueldade teatral que o abandonei em frente ao portão. Ele voltou para casa devagar, e nos olhos dele havia um pânico que recordo.

DIFEL
trd. Jorge Silva Melo
(lido em 1996)