Vida, Modo de Usar: Debaixo do Vulcão

DEBAIXO DO VULCÃO
MALCOLM LOWRY
(1947)
A república é atravessada, mais ou menos de norte a sul, por duas cadeias de montanhas que formam entre ambas um bom número de vales e de planaltos. Sobranceira a um desses vales, o qual, por sua vez, é dominado por dois vulcões, ergue-se, a uma altura de seis mil pés acima do nível do mar, a cidade de Quauhnahuac. Fica bastante ao sul do trópico do Câncer, ou, para falar com mais exactidão, no paralelo 19, quase à mesma latitude a que, a oeste do Pacífico, se encontram as ilhas Revillagigedo, ou, ainda mais para oeste, a ponta mais meridional de Havai e, para leste, o porto de Tzucox, situado na costa atlântica do Iucatão, perto da fronteira das Honduras Britânicas e, finalmente, muito mais para leste, na baía de Bengala, a cidade indiana de Juggernaut.
As muralhas da cidade, que se encontra edificada numa encosta, são altas; as ruas e os becos, tortuosos e arruinados; as ruas, coleantes. Possui uma bela estrada de tipo americano, que vem do norte e acaba por se perder em ruas estreitas, degenerando finalmente num verdadeiro caminho de cabras. Quauhnahuac possuí dezoito igrejas e cinquenta e sete bares. Também se orgulha do seu campo de golfe e de nada menos do que quatrocentas piscinas, quer públicas, quer particulares, de água incessantemente renovada pelas reservas das montanhas e, além disso, de muitos e esplêndidos hotéis.
O Hotel Casino de la Selva assenta numa encosta um pouco mais elevada, que se ergue logo à saída da cidade e perto da estação dos caminhos de ferro. Bastante afastado da estrada principal, encontra-se rodeado de jardins e de terraços, dos quais se avista, em toda a volta, um extensíssimo panorama. Apesar de ser um autêntíco palácio, paira à sua volta um certo ar de desolado esplendor. É que deixou de ser casino. É possível até que ninguém se lembre de ir ali jogar os dados, a ver quem pagará uma bebida no bar. Dir-se-ia que ainda erram por ali fantasmas de jogadores arruinados. E quase se não vê ninguém nadar na sua majestosa piscina olímpica. As pranchas erguem-se no ar, solitárias e melancólicas. Nos seus campos de pelota basca, desertos, a erva cresce desordenadamente. E os seus dois campos de ténis só durante a estação funcionam.
Ao cair do crepúsculo do dia de Finados desse Novembro de 1939, dois homens vestidos de flanela branca bebiam anis, sentados no terraço principal do Casino. Depois do ténis, haviam jogado o bilhar, e as raquetas de ambos, protegidas por capas impermeáveis e apertadas nos seus caixilhos — triangular o do médico, quadrado o do outro — jaziam no parapeito em frente de ambos. À medida que as procissões vindas dos cemitérios desciam a colina, num movimento serpentino e se aproximavam do hotel, os sons plangentes dos cânticos iam soando com mais insistência aos ouvidos dos dois homens, que se voltaram a observar os doridos. Estes só se tornaram visíveis mais tarde, quando as melancólicas luzes das suas velas, serpenteando a distância, projectaram os seus clarões sobre os distantes pés de milho. O dr. Arturo Diaz Vigil empurrou a garrafa de Anis del Mono na direcção de Jacques Laruelle, que, naquele momento, se inclinava para a frente, num movimento de viva atenção.
Para as bandas do Oriente, e um tanto abaixo deles, sob o esplendor da tarde profundamente rubra e cujos reflexos incendiavam as piscinas, como se estas não passassem de miragens, um grande hálito de paz e de doçura envolvia a cidade. Do ponto em que eles se encontravam, tudo parecia de uma tranquilidade satisfatória. Contudo, se alguém apurasse finamente o ouvido, como naquele momento o fazia Laruelle, poderia aperceber-se de um rumor confuso e longínquo, distinto ainda assim, conquanto de certo modo indissociável do subtil murmurar, do tinir das campainhas dos doridos — de cantos e de risos, que subissem e descessem no ar e de um firme estrondear de passos apressados — eram os clamores e os gritos provocados pela fiesta, que durara todo o dia.
Laruelle serviu-se de mais um anis, que bebia pelo facto de este lhe lembrar o absinto. No rosto acendera-se-lhe uma intensa vermelhidão; as mãos tremeram-lhe ligeiramente ao segurar a garrafa, em cujo rótulo um demónio rubicundo brandia um tridente na direcção do bebedor.
— A minha intenção era persuadi-lo a sair daqui, a fim de proceder a uma cura de desintoxicação — disse o Dr. Vigil, num francês hesitante. — Mas eu próprio me sentia tão mal no dia seguinte ao do baile, que — creia — ainda agora me ressinto fisicamente disso, o que é péssimo, visto que nós, os médicos, temos necessidade de nos comportarmos como se fôssemos apóstolos. Lembra-se? Nesse dia, também jogámos ténis. Bem, depois de ter ido ver o Cônsul ao jardim da casa dele, mandei-lhe recado por um rapaz, a dizer-lhe que lhe agradeceria se quisesse bater à minha porta e estar uns momentos comigo; se não, que me escrevesse um bilhete, caso a bebida ainda não tivesse acabado com ele.
Laruelle sorriu.
Mas eles foram-se — prosseguiu o outro — e, sim, também tencionava perguntar-lhe, a si, nesse dia, se o tinha ido ver a casa.
— Quando você telefonou, Arturo, estava ele em minha casa.
— Oh, bem sei, mas nós tínhamo-nos embebedado de tal maneira, na noite anterior! Tinha sido uma borracheira tão completa, que suponho que o Cônsul estava tão doente como eu. — O Dr. Vigil abanou a cabeça. — E esse mal-estar não é apenas físico; atinge também essa região a que se costuma dar o nome de alma. Coitado do seu amigo! Deu cabo do seu dinheiro neste mundo a forjar tragédias constantes!
Relógio d'Água, 2007
(Ficções)
trd. Virgínia Motta

DEBAIXO DO VULCÃO
(lido em 2018)