Vida, Modo de Usar: A Longa Viagem


A LONGA VIAGEM
JORGE SEMPRÚN
(1963)

Há este amontoado de corpos no vagão, esta dor lancinante no joelho direito. Os dias, as noites. Num esforço tento contar os dias, tento contar as noites. Talvez isso me ajude a ver claro. Quatro dias, cinco noites. Mas devo ter contado mal ou então há dias que se transmudaram em noites. Tenho noites a mais; noites para dar e vender. Uma manhã, de facto, foi numa manhã que esta viagem principiou. Esse dia inteiro. Depois uma noite. Alço o polegar na penumbra do vagão. O polegar, por essa noite. E depois outro dia. Estávamos ainda em França e o comboio mal se havia movido. Ouvíamos vozes, por vezes, de ferroviários, para além do ranger das botas das sentinelas. Esquece essa noite, foi o desespero. Outra noite. Soergo outro dedo na penumbra. Um terceiro dia. Outra noite. Quatro dias, portanto, e três noites. Três dedos da minha mão direita. E o dia em que estamos. Quatro dias, portanto, e três noites. Caminhamos para a quarta noite, o quinto dia. Para a
quinta noite, o sexto dia. Mas seremos nós quem avança? Nós estamos imóveis, amontoados uns em cima dos outros, a noite é que avança, a quarta noite, para os nossos futuros cadáveres imóveis. Dá-me vontade de rir: realmente, vai ser a Noite dos Búlgaros. 
«Não te canses», diz o camarada. 
No turbilhão do embarque, em Compiègne, entre gritos e coronhadas, encontrou-se a meu lado. Dir-se-ia nunca ter feito outra coisa em toda a sua vida: viajar com cento e dezanove companheiros num vagão de mercadorias fechado a cadeado. «A janela», disse ele ràpidamente. Em três passadas e outras tantas cotoveladas, abriu-nos passagem até junto de um dos postigos, vedados com arame farpado. «Respirar é o mais importante, estás a perceber, poder respirar.» 
«Para que te serve isso, rires-te?», disse o rapaz. «É cansares-te para nada.»
 «Estava a pensar na noite que aí vem», res-pondilhe. 
«Que chatice», tornou o rapaz. «Lembra-te das noites que já lá vão.» 
«Tu és a razão em pessoa.» 
«Chateio-te?», diz-me ele. 
Há quatro dias e três noites que vamos imbricados um no outro, o cotovelo dele nas minhas costas, o meu no estômago dele. Para que ele possa assentar os pés no fundo do vagão, vejo-me obrigado a manter-me só numa perna. Para
que eu possa fazer outro tanto, e para que possa sentir os músculos da barriga das pernas descontraírem-se um pouco, ele próprio se conserva apoiado só numa perna. Ganhamos assim alguns centímetros de espaço e descansamos um de cada vez. 
Em volta de nós é a penumbra, com respirações anelantes e súbitas impulsões, desnorteadas, quando um de nós se vai abaixo. Quando eles contaram cento e vinte diante do vagão, senti um calafrio nas costas, ao pensar no que isso poderia querer dizer. Mas foi ainda pior. 
Fecho os olhos, volto a abri-los. Não é um sonho. 

Arcádia
(Encontro)
trd. João Gaspar Simões
(lido em 2017)