Vida, Modo de Usar: Na Outra Margem da Memória

NA OUTRA MARGEM DA MEMÓRIA
VLADIMIR NABOKOV
(1966)
O berço baloiça por cima de um abismo e o senso comum diz-nos que a nossa vida mais não é do que uma brecha de luz entre duas eternidades de treva. Apesar de gémeas idênticas, vulgar será que o homem olhe com maior calma o abismo pré-natal do que o outro para onde se dirige (a qualquer coisa como quatro mil e qui-nhentas batidas de coração por hora). Sei no entanto de um jovem cronófobo que entrou numa espécie de pânico quando viu pela primeira vez cenas filmadas em sua casa, semanas antes de ter nascido. Viu um mundo praticamente igual — a mesma casa, as mesmas pessoas — mas reparou que ele próprio ainda lá não estava nem havia quem lamentasse a sua ausência. De relance viu a mãe dizer adeus na janela do andar de cima, e esse estranho gesto perturbou-o como se fora uma misteriosa despedida. Porém, o que mais susto lhe meteu foi a imagem de um carro de bebé com o ar pretensioso, com o ar abusivo de um esquife, novinho em folha e parado no vestíbulo; também ele vazio, como se os seus próprios ossos, nessa corrida inversa de factos, se tivessem desintegrado.
Em vidas jovens, visões destas não são raras. Ou, pondo a questão de outro modo, as primeiras e as últimas coisas tendem a conotar-se de adolescência — a menos que orientadas por uma religião veneranda e sólida. De um homem maduro espera a natureza que ele aceite dois buracos negros, à proa e à ré, tão impassível como aceita as extraordinárias visões do intervalo que entre eles existe. A imaginação, suprema delícia do imortal e do imaturo, devia ser limitada. Para gozarmos a vida não devíamos gozá-la de mais.
Revolto-me contra este estado de coisas. Sinto que é urgente exteriorizar esta revolta e levá-la a terreno firme. O meu pensamento tem feito um esforço colossal e repetido para destrinçar os mais leves reflexos pessoais na treva impessoal, e em ambos os lados da minha vida. E que esta treva só é feita do muro do tempo que me separa, a mim e a estas minhas mãos doridas, do mundo livre do intemporal, é crença que partilho de bom grado com o selvagem que pintou a pele com a maior ostentação. Tenho feito no passado incursões de espírito — com o pensamento a esvair-se em desespero, à medida que me vou introduzindo por remotas regiões onde procuro a porta secreta às apalpadelas, e só para concluir que é esférica, a prisão do tempo, e não tem saída. Tudo tentei, excepto o suicídio. Despi-me da identidade para passar a convencional fantasma e deambular por domínios que já existiam antes de me conceberem. Mentalmente tenho sofrido a companhia degradante das romancistas vitorianas e de coronéis aposentados que se lembram de ter sido escravos mensageiros numa estrada romana em vidas anteriores, ou sábios que iam sentar-se à sombra dos salgueiros de Lassa. Tenho feito uma devassa aos meus velhos sonhos, no encalço de chaves e directrizes — e desde já se diga que rejeito por completo esse banal, mesquinho e sobretudo medievo universo de Freud, com o tortuoso inquérito que faz aos símbolos do sexo (um tanto como procurar acrósticos de Bacon nas obras de Shakespeare) e a espreitadelazinha, com o seu quê de amargo e embrionário, que dá à vida amorosa dos pais para despojá-la, depois, de toda a naturalidade.
Ao princípio eu não sabia que o tempo, tão ilimitado à primeira arremetida, era uma prisão. Ao perscrutar a minha infância (a melhor fonte para a pesquisa da própria eternidade), vejo o despertar da consciência como descontínua série de instantes com intervalos sucessivamente mais curtos, até se formarem cintilantes blocos de percepção que oferecem à memória um escorregadio suporte. Eu tinha aprendido palavras e números, mais ou menos ao mesmo tempo e desde tenra idade, mas saber a fundo que eu era eu e os meus pais eram os meus pais, ao que parece só mais tarde foi estabelecido, quando passei a associar em directo um conhecimento destes com a descoberta da relação entre a idade deles e a minha. A julgar pela luz forte que imediatamente me invade a memória quando penso numa tal revelação, pelos salpicos fragmentados de sol que ela exibe, numa sobreposição de espécies vegetais, o momento pode ter sido o aniversário da minha mãe passado no campo, no Verão anterior, altura em que fiz perguntas e avaliei respostas dadas. Tudo exactamente como deve ser, de acordo com a teoria da recapitulação: no cérebro do mais antigo dos nossos ancestrais, o início da consciência reflexiva por certo coincide com um dealbar da sensação de tempo.
Difel, 1986
trd. Aníbal Fernandes
(lido em 2011)