Vida, Modo de Usar: O Que Disse Tianyi


O QUE DISSE TIANYI
FRANÇOIS CHENG
(1998)

Tudo começou com aquele grito na noite. Outono de 1930. A China com os seus cinco mil anos de história, e eu, com quase seis anos de vida à face da terra, pois que tinha nascido em Janeiro de 1925. Os meus pais acabavam de me levar pela primeira vez para o campo, para fugir à cidade de Nanchang ainda sufocada de calor e repleta de cenas de execução capital. Estava eu com a minha irmã mais nova no quarto onde a nossa família ia dormir, enquanto os meus pais se demoravam, apesar do adiantado da hora, no quarto vizinho, a falar com a tia que nos acolhia. Estávamos os dois entretidos com os objectos rústicos que se dispunham ao lado da cama grande e única quando, de repente, se ouviu um grito prolongado. A princípio lamentoso, longínquo, depois cada vez mais próximo e estridente, acabou por se transformar numa espécie de melopeia de palavras repetidas, monótona, lancinante mas infinitamente inebriante. Era uma voz de mulher, dir-se-ia que arrancada das entranhas, das suas ou das da terra, de tal maneira fazia ressoar ecos imemoriais. As palavras ouviam-se agora distintamente: «Alma errante, onde estás tu, onde estás tu?... Alma errante, vem cá, vem cá... Alma errante...» Literalmente seduzido por aquela voz e por aquelas palavras, por certo também para tranquilizar a minha irmã, muda de medo, respondi numa voz quase alegre: «Sim, eu vou; sim, eu vou...» E quanto mais a voz de lá de fora crescia, mais forte eu respondia. Foi então que num tropel irromperam pelo quarto adentro os adultos, com a minha tia à frente, seguida pelos meus pais. Todos me gritaram: «Cala-te! Cala-te!» e logo de seguida, sem transição: «Agora deitem-se! Pensávamos que já estavam na cama!» Aquela ordem tão brusca como brutal, dada sem explicação e acompanhada de cenhos franzidos, provocou em mim um tal choque que fiquei de respiração suspensa. Apagada a vela, no escuro, não havia meio de adormecer. Consegui apanhar algumas palavras da conversa entre os adultos, pelas quais acabei por perceber praticamente tudo o que estava em jogo. A mulher que gritava acabara de perder o marido. Naquela noite, chamava pela alma errante do morto para que ela não se perdesse. De acordo com o ritual, depois de ter queimado notas de banco em intenção dos mortos, no preciso momento da terceira vigília, a viúva começa o seu chamamento. Se por acaso algum dos vivos responde «sim» ao chamamento, perde o corpo no qual se introduz a alma errante do morto que, do mesmo passo, regressa ao mundo dos vivos. Enquanto a alma daquele que assim fica sem o corpo se torna por sua vez errante. Erra até encontrar outro corpo para nele reencarnar. Pouco depois, ainda ouvi os adultos tranquilizar-se: «Mas a resposta dum inocente não conta!» «Como é que eles podem ter tanta certeza?» perguntava-me eu. E via-me a perder o corpo, já morto!

Bizâncio, 2001
(Montanha Mágica)
trd. Francisco Agarez
(lido em 2002)