Vida, Modo de Usar: Plexus

PLEXUS
(Rosa-Crucificação #2)
HENRY MILLER
(1953)
Fora Maxie Schnadig quem me apresentara, havia algum tempo, a Karen Lundgren. Não faço a mínima ideia do que os terá relacionado um com o outro, pois não tinham nada em comum, absolutamente nada.
Karen Lundgren era um sueco que estudara em Oxford, onde causara uma certa sensação devido às suas proezas atléticas e aos seus extraordinários conhecimentos. Gigante de anelados cabelos louros, voz suave e delicadeza excessiva, possuía os instintos combinados da formiga, da abelha e do castor. Minucioso, metódico e obstinado como um buldogue, levava até ao fim tudo aquilo em que se metia. Divertia-se tão afincadamente como trabalhava, mas a sua paixão era o trabalho. Era capaz de trabalhar de pé, sentado ou deitado na cama e, como todos os grandes trabalhadores, no fundo era preguiçoso como o pecado. Sempre que se preparava para fazer qualquer coisa, tinha primeiro de inventar processos e modos de o fazer com o mínimo esforço. Escusado seria dizer que esses atalhos por onde se metia implicavam muito tempo e trabalho. Mas sabia-lhe bem suar as estopinhas a inventar atalhos. Além disso, o seu segundo nome era eficiência. Não passava de um dispositivo falante e andante de poupar trabalho.
Por muito simples que um projecto fosse, Karen conseguia complicá-lo. Aturara uma boa dose da sua excentricidade enquanto trabalhara como seu ajudante num gabinete de pesquisas antropológicas, alguns anos atrás. O tipo iniciara-me nas absurdas complexidades de um sistema de ficheiro, comparado com o qual o nosso sistema Dewey parecia uma brincadeira de crianças. Com o sistema de Karen, podíamos indexar tudo, absolutamente tudo, de um par de meias de lã brancas a hemorróidas.
Como disse, havia diversos anos que não via Karen. Sempre o considerara um anormal e não tinha respeito nenhum nem pela sua tão gabada inteligência nem pelas suas proezas atléticas. Enfadonho e laborioso, eis o que principalmente o caracterizava, quanto a mim. É verdade que, de vez em quando, condescendia em soltar uma forte gargalhada. Mas ria por assim dizer com excessivo gosto e sempre a despropósito ou extemporaneamente. O indivíduo cultivava essa faculdade de rir do mesmo modo que em tempos cultivara os músculos. Tinha a mania de ser todas as coisas para todos os homens — tinha a mania, mas não tinha o talento.
Faço esta descrição curta do tipo porque sucede que estou outra vez a trabalhar com ele, a trabalhar para ele. E a Mona também. Estamos a viver todos juntos na praia, em Far Rockaway, numa barraca que ele próprio construiu. Para respeitar a verdade, devo dizer que a casa ainda não está acabada. Daí a nossa presença nela. Trabalhamos sem salário, a troco apenas de cama e mesa. Ainda há muito que fazer. Demasiado. O trabalho começa a partir do momento em que abro os olhos até àquele em que caio de fadiga.
Mas começando pelo princípio... Encontrar Karen na rua foi para nós algo como uma sorte caída do céu. Estávamos literalmente sem um chavo quando ele apareceu. O Stanley dissera-nos uma noite, quando se preparava para trabalhar, que estava farto de nós, que entrouxássemos as coisas e saíssemos imediatamente. Ajudar-nos-ia a fazer as malas e acompanhar-nos-ia ao metropolitano. Sem comentários. Claro que eu esperava que, mais dia, menos dia, acontecesse algo semelhante e não estava absolutamente nada zangado com ele. Pelo contrário, sentia-me até divertido.
Livros do Brasil, 2003
(O Jardim das Tormentas)
trd. Fernanda Pinto Rodrigues
(lido em 1994)